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Divinas Palavras (de: Ramón del Valle-Inclán; dir: Rodolfo García Vázquez) *

Apresentação: Prometi duas vezes, a Ivam Cabral e a Alberto Guzik, que iria fazer um texto comentando o espetáculo, ao qual assisti também duas vezes. As excessivas tarefas a que me fiz sujeito e minha sensibilidade, cada vez mais bloqueada - talvez por desnorteio, impediram-me de parar para sentir-me e sentir melhor a peça. O texto "Palavras divinas desperdiçadas", de Jefferson del Rios (O Estado de São Paulo, 14/12/2007), felizmente serviu como faísca: 1) por discordar dele em alguns pontos, 2) por, em oposição a ele, poder retomar assuntos que me movem e 3) por atiçar novamente meu sistema nervoso. Os comentários a seguir apareceram como contraposição a ele e como forma de me libertar, não da tarefa, mas do peso do grotesco. Mas só do peso, porque o grotesco, ele mesmo, só podemos mesmo carregar até o fim.

Breve comentário do texto de Del Rios: 1) Todo teatro é compartilhado, tão logo é encenado. Por isso, e por optar por purismo, Beckett dirigia ele mesmo seus espetáculos (alguns). Já o texto não é mais do autor, simplesmente. Levei tempo - e muita dor - até me convencer disso, sendo eu autor. Se tivéssemos de avaliar o teatro pelas intenções do autor, só poderíamos fazê-lo assistindo uma encenação montada pelo próprio. Podemos avaliar em que medida a encenação respeita o texto, mas só isso, sem que isso necessariamente desmereça a encenação. 2) Não vivemos numa época, como a de Valle-Inclán, que insiste em defender algo que não seja "a essência humana com seus instintos e paixões elementares". Ao contrário, esta nossa época está até o pescoço invadida pelo esgoto dessa constatação. Mas queremos sair da lamaçal, e como fazemos? Ao que parece, a encenação dos Satyros busca uma saída a isso: conseguir resgatar alguma perolazinha lá na lama dos porcos (que ao fundo aparecem, finalmente). 3) A comoção causada por encenações restritas à mentalidade da época de Valle-Inclán deve, por isso, ser radicamente da nossa. E nesta nossa não parece haver mais espaço para finais majestosos, com órgãos de igreja. Ela tem de estar mais em nós do que no espetáculo que vemos - até porque vivemos numa sociedade planetária em que TUDO é espetáculo. Nesse sentido, só pode aparecer deslocada (ou desfocada) a acusação de falta de transcendência ao espetáculo (por ele ser, digamos, pouco realista). => Em outros pontos, pode haver certa concordância minha com a apuração sensível realizada por Del Rios.

Comentários sobre a peça

Texto e Adaptação: Ágil, rebuscado, em alguns pontos confuso, agressivo, navegando entre reminiscências a um ambiente familiar destruído e a ambientes hedonistas de atomização selvagem. A descomunal rapidez da encenação promove alguns problemas de entendimento (dicção?). Os personagens parecem a todo momento hesitar entre uma desnaturação que os culpabiliza (pois ainda buscam saída na ausência de saída) e uma insistência em buscarem prazer no exagero (o que só conduz ao não-prazer (dada a ausência real de qualquer medida). O excesso (apesar de tudo, calculado) de referências chulas tende mais a enfraquecer que a contribuir em certas cenas (não como ocorre, por exemplo, com "Feios, sujos e malvados", só para ficarmos no cinema). Algumas soluções (em texto) parecem remeter a pontos de vista morais que deveriam ter sido sobrepujados. Cenário, Figurino e Adereços: Forte, agressivo, diversificado, apontando ao passado, ao instinto, à técnica, à cegueira tecnológica, masm muito especialmente à restrição animalesca a que o ser humano sempre estará sujeito. Simbologias sacras destroçadas e remontadas por chips, parafusos, fios e conexões (inexistentes) servem melhor (talvez por serem mais básicas) do que algumas das soluções (referências a Exterminador do Futuro) tão dependentes de jogos de luz difíceis de reproduzir no contido ambiente da encenação. Achados fundamentais: o monstro (em transições que concentram e deslocam à transcendência ao negativo), o menino morto (o horror da cabeça-isopor), Cachorro e os figurinos de Marica do Reino e de Vizinha, que, nas outras figuras grotescas, deveriam ter sido sujeitos a ainda maior deturpação (em Marica e Vizinha, os rostos transitam no tênue fio da inexistência).

Atuações: Ivam Cabral, Nora Toledo e Alberto Guzik destacam-se, de forma inapelável. Cabral, no personagem do menino, não se atém à comiseração (o que infelizmente faz quando narra as cenas): ao contrário, explora a noção do existente-autômato, o miserável-que-não-deveria-ter-nascido. A incontida comoção resgatada por meio de achados como "joga beijo" ou "tomá no cu, caraio, filho-da-puta" parece radicar num lugar de empatia suficientemente distanciado da moral agressor-vítima mas não terminantemente descolado da auto-identidade do espectador como mero ser humano. É por isso que Miguelín (Laerte Késsimos) não precisava ter feito uso de crueldade para matar Laureano (Ivam Cabral): a intenção está nele mesmo (o menino não pediu para nascer, deve morrer; Miguelín não quer viver, precisa matar). Nora Toledo (Marica do Reino) afunda-se na personagem de forma inacreditável, convidando a que espectadores melhor localizados tentem achá-la (e não a encontram). Pedro Gailo (Alberto Guzik) encarna dores pressupostas no papel-de-ser-homem: e hoje este está tão mal personificado pela dor (falsa e por isso excessiva) que requeria um "masculino" travestido de estupidez - e isso Guzik consegue com primor (salvando assim o texto, nesse ponto anacrônico). Pontos a destacar: Miguelín (de força e agilidade surpreendente) e Simoninha (Cléo de Paris), personagens de transição, devem requerer maior profundidade.

Direção: Ágil, concentra a ação radicalmente à frente do palco, em coreografias em que predominam os movimentos circulares (dando a impressão de eterna sucessão de dores), reservando o centro aos momentos-clímax (excetuando a morte de Laureano). Poderia trabalhar melhor o isolamento da perdição (como faz com o incesto entre Gailo e Simoninha).

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